Até há bem pouco tempo entendia-se por “pensamento
mítico” o modo de pensar – que se reflectia em práticas mágico-religiosas – das
sociedades arcaicas situadas nos últimos degraus da civilização. Pensava-se,
então, que o mito não passava de uma fábula sem qualquer conteúdo real. O mito
seria o modo pelo qual mentes infantis e supersticiosas procuravam explicar os
fenómenos naturais que presenciavam a cada passo (como seja o relâmpago, o
trovão, etc.) sem poderem descortinar as suas causas e, por isso, temiam-nos.
Por outras palavras, o mito não seria mais do que o modo de expressão do homem
primitivo que via em tudo aquilo que não compreendia fenómenos produzidos por
forças sobrenaturais que ele, temeroso, venerava e cultuava, fazendo libações e
sacrifícios a fim de que esses poderes
deificados lhe manifestassem o seu agrado através de dádivas (chuva,
fertilidade, etc.) ou, pelo menos, o não castigassem por meio de todo o tipo de
calamidades.
As chamadas “mitologias” exprimiriam
esta maneira de pensar do homem de mentalidade primitiva, se bem que de uma
forma mais elaborada. Assim, por exemplo, as mitologias grega, ou suméria,
etc., não passariam de uma espécie de “contos de fadas”, de inocentes mentiras
em que acreditaram piedosamente milhões de pessoas durante milhares de anos. O
interesse da sua divulgação actual reduzir-se-ia à esfera meramente cultural,
com comentários bem explícitos sobre o grau de superstição dessas gentes, para
que não restasse a menor sombra de dúvida no espírito daquele que se iniciasse
no estudo das antigas culturas. Curioso conceito de “cultura” é este que se
fundamenta em pressupostos e em dogmas. Para que serve saber, perguntamos, se a
cultura que nos é fornecida, em vez de estimular a reflexão é um meio de
imposição de crenças tão efémeras como o nosso próprio século. A vaidade
humana, que impede reconhecer que errámos, tem sido o maior obstáculo ao
verdadeiro progresso da Humanidade.
Começa a ser evidente o absurdo que é
pensar que homens como Sócrates, Platão, Pachacutec, etc., estivessem imbuídos
de mentalidade primitiva. Por outro lado, e paralelamente a isto, os avanços da
Hermenêutica e da própria Antropologia forçaram a uma revisão do conceito de mito, e os aturados estudos efectuados
nas últimas décadas em torno do pensamento mítico no seio das sociedades
primitivas por especialistas como Mircea Eliade, Malinowski ou Gilbert Durand,
a par da valorização do pensamento simbólico-analógico produziram,
necessariamente, os seus efeitos positivos.
Creio que se está a processar uma
autêntica revolução de mentalidades, cujos resultados se verão num futuro não
muito distante.
Era necessário e inevitável que isto
viesse a suceder. A nossa época perdeu as suas raízes. Sentimo-nos
desenraizados e esse sentimento engendra angústia e loucura. Vive-se
perigosamente num ambiente de instabilidade em que tudo foi posto em causa: os
sonhos, as ideias, as crenças e os costumes. Não se pode viver assim durante
muito tempo. Por isso se fala tanto em evasão, em liberdade, em crise.
Pressentimos que algo vai mudar e, embora a maioria – como desde sempre todas
as maiorias –, prefira não pensar e vá vivendo com o que tem e como pode “à
espera de melhores dias”, há os que acreditam num “Fim do Mundo” próximo e
outros, mais optimistas, numa próxima “Idade de Ouro”. Surge de novo o
interesse por velhas superstições e as outrora “ciências malditas”, como a
Astrologia, têm cada vez mais adeptos e já são estudadas em algumas
universidades. Aparece, renascido das cinzas, o mito a impregnar o ambiente
social. Na verdade, como demonstra M. Eliade, o mito nunca deixou de existir,
de impregnar o homem, nem mesmo nos tempos modernos; simplesmente caiu na
esfera do profano no seio de uma sociedade dessacralizada. Agora renasce,
purificado pelo fogo, como um apelo atávico do Homem em busca das suas raízes.
Uma época de crise é uma época de
mudança, como indica a própria etimologia da palavra. Cremos que muita coisa
irá mudar, mas tudo será para nosso bem, visto existir um arquétipo evolutivo,
ou seja, um plano cósmico que se vislumbra melhor precisamente nas charneiras
da História.
Nas raízes da História está a chave que
abre as portas do futuro. Por isso vamos dar ouvidos ao apelo que nos vem do
mais fundo dos tempos e mergulhar, livres de tabus e preconceitos, no ambiente
acolhedor do mito.
1.
O sagrado e o mito
O mito contém na sua raiz etimológica a
própria ideia de “mistério”. Com efeito, a presença do mito é uma constante nas
sociedades de corte iniciático. Para Luc Benoist
“o desenvolvimento de uma verdade doutrinal em mito não é uma fábula, visto que
o vocábulo fábula provém de uma outra raiz que significa palavra (fabula), enquanto o vocábulo mito provém
de uma outra raiz que significa mudo e silencioso (mutus). Ora esta ideia de silêncio prende-se às coisas que, pela
sua própria natureza, são inexprimíveis a não ser por símbolos. Mito e mistério
emanam pois da mesma ideologia esotérica, cujo carácter provém da sua
primordialidade e da sua necessidade”. O mito é, por conseguinte, o relato de
uma história verdadeira, sagrada, que se situa for a dos limites espacio-temporais.
Daí o seu carácter subjectivo que actua nos domínios do inconsciente e que,
portanto, é reversível. Na opinião de C. G. Jung o “inconsciente colectivo”
precede a psique individual. Quer isto dizer que o mito é o móbil determinante
do comportamento do homem. Viver um mito significa ter acesso à esfera do
inconsciente que é um verdadeiro percurso iniciático. “Viver os mitos – escreve
M. Eliade – implica uma experiência verdadeiramente ‘religiosa’, visto que se
distingue da experiência vulgar da vida quotodiana”.
E, para o homem religioso o essencial precede sempre a existência.
O mito designa uma “história
verdadeira”, porque sagrada, quer dizer um acontecimento primordial que teve
lugar no começo do tempo. “O homem é aquilo que é hoje porque uma série de acontecimentos
ocorreram ab origine. Os mitos
contam-lhe esses acontecimentos e, ao fazê-lo, explicam-lhe como e por que
razão ele foi constituído desse modo. Para o homem religioso, a existência
real, autêntica, começa no momento em que recebe a comunicação dessa história
primordial e assume as suas consequências. Há sempre história divina, pois as
personagens são os Seres Sobrenaturais e os Antepassados míticos.”
Para B. Malinowski “o mito é um
elemento essencial da civilização humana; longe de ser uma vã fabulação, é,
pelo contrário, uma realidade viva, à qual constantemente se recorre, não é uma
teoria abstracta nem uma ostentação de imagens, mas uma verdadeira codoficação
da religião primitiva e da sabedoria prática.”
Vemos, assim, que está definitivamente
ultrapassada a ideia de que os mitos não passavam de meras fabulações, poéticas
por vezes, mas desprovidas de conteúdo real. Ora, é precisamente o contrário
que sucede. Interpretar à letra um mito, objectivamente, equivale a destruír a
possibilidade de o entender. É verdade que hoje predomina o “racional”, porém,
convém recordar que o acesso ao mito, em si eminentemente subjectivo, nunca se
fará com esse instrumento. Por detrás do seu aspecto “fantasioso” o mito contém
uma verdade oculta, uma história verdadeira, porque se refere sempre a
realidades. Dizia o Imperador Juliano que “aquilo que nos mitos se apresenta
imverosímil é precisamente o que nos abre o caminho para a verdade. Na
realidade, quanto mais paradoxal e extraordinário for o enigma, tanto mais
parece avisar-nos que não devemos confiar na simples palavra, mas
esforçarmo-nos em torno da verdade oculta.”
A importância dos mitos na história da
humanidade, e não apenas nas sociedades arcaicas é de tal ordem que, enquanto houver
história haverá mitos, independentemente de se ter ou não consciência deles.
Daí que não seja exagero afirmar ser impossível compreender a História,
qualquer que ela seja, sem os motores ocultos que a impulsionam, isto é, os
mitos.
Mircea Eliade salienta que “os mitos
são a forma mais geral e eficaz de perpetuar a consciência de um outro mundo,
de um além, seja ela o mundo divino ou o mundo dos Antepassados”.
E Van der Leeuw não hesita em afirmar que é suficiente “conhecer o mito para
compreender a vida.”
11. O mito e o símbolo
Se o mito é uma Ideia Primordial, a
função do símbolo é de a tornar inteligível, de lha servir de “linguagem”. Dizia
Santo Isidoro que o símbolo é um signo que dá acesso a um conhecimento, ou
seja, é signo do invisível, do espiritual. E, neste contexto, Mircea Eliade escreve
que “o símbolo revela uma realidade sagrada ou cosmológica que nenhuma outra
‘manifestação’ poderia revelar.”
Na sua etimologia – em grego sumbolon – a palavra símbolo anuncia a
ideia de continente e pode ser figurada por uma barca, receptáculo do sagrado.
O símbolo, na sua função mediadora, é o veículo de algo que, pelo seu carácter
atemporal deve ser preservado e intuído. Para M. M. Davy “a função do símbolo é
de despertar o homem e de conduzi-lo ao seu princípio original, quer dizer, ao
plano do sagrado no qual tudo é ordem, medida, proporção. Assim, o símbolo
permite ao homem atingir um nível inacessível à razão. Ele oferece um
ensinamento duplo, o de recordar o sentido de uma realidade e de indicar uma
via para chegar até ela”.
Acrescentamos que para Platão conhecer significa recordar, isto é, conhecer e
compreender o verdadeiro, o belo e o bom é, sobretudo, recordar-se, ter
reminiscências vivas de uma existência puramente espiritual, no outro mundo.
O acesso à compreensão de um símbolo
varia consoante o nível de consciência daquele que o contempla. O símbolo em si
é invariável, mas a leitura que dele se pode extraír é tão diversa quão
diversos são os observadores. É por isso que os símbolos universais são uma
constante em todas as épocas e lugares geográficos, porque transmitem
realidades eternas alheias aos condicionalismos temporais. “Um mesmo símbolo,
por exemplo a cruz, será diversamente interpretado por um homem segundo as
diferentes idades do seu nascimento e do seu crescimento espiritual. O símbolo
não muda, mas a mensagem que ele oferece depende do estado de consciência
daquele que o capta”. Assim o
símbolo, “na sua realidade profunda, atesta a presença do divino, exprime o
sagrado e, por esse facto, compara-se a uma revelação.”
12. O mito e o rito
A palavra rito, segundo a sua
etimologia sânscrita (rita) significa
o que é conforme à ordem. Segundo Luc Benoist podemos definir um rito “como um
conjunto de gestos, respondendo a necessidades essenciais”, devendo eles “ser
executados seguindo uma certa euritmia. São gestos elementares que realizamos
todos os dias e que acompanham a nossa maneira de viver, de caminhar, de nos
vestir, de manifestar a nossa simpatia ou a nossa hostilidade”.
Para Eliade “um rito é a repetição de um fragmento do tempo original” por meio
do qual o homem das sociedades primitivas se insere no “tempo mítico”, tempo
esse que, acrescenta o mesmo autor, “é ‘criador’, no sentido de que é então, in illo tempore, que tiveram lugar a
criação e a organização do cosmos, da mesma forma que a revelação, pelos
deuses, ou pelos antepassados, ou pelos heróis civilizadores, de todas as
actividades arquetípicas”.
“O tempo original – adianta Eliade – serve de modelo para todos os tempos; o
que sucedeu um dia repete-se sem interrupção.” É por isso que “tudo quanto aos
olhos do homem moderno é verdadeiramente ‘histórico’, quer dizer, único e
irreversível, é considerado pelo primitivo como destituído de importância,
porque não tem precedente mítico-histórico.”
Aproximando estas duas opiniões,
parece-nos ser correcto afirmar que um rito é um conjunto de gestos efectuados
segundo uma ordem, exprimindo uma atitude de interiorização pela repetição de
um modelo exemplar. Mito e rito são, pois, “as expressões complementares de um
mesmo destino, sendo o ritual o seu aspecto litúrgico e o mito a sua realização
através dos episódios de uma história vivida.”
In Eduardo Amarante "Universo Mágico e Simbólico de Portugal", Apeiron Edições