SINTRA, A SERRA DA LUA



A santificação do lugar é muito anterior à vinda dos Romanos para a Península Ibérica. Nos tempos proto-históricos, este monte sagrado situado nas proximidades de Lisboa tinha o nome de Serra da Lua. Da época romana temos, também, da região de Sintra, inscrições consagradas ao Sol e à Lua. “Não seria de estranhar, escreve Leite de Vasconcelos, que os Fenícios ali tivessem um santuário com a invocação da Lua, como decerto os tinham no Sacro Promontório em honra de outros deuses: em tal caso o respectivo nome da divindade seria Astarte, deusa semítica da Lua e do oceano, a que os Gregos fizeram corresponder Afrodite.”[1]
Etimologicamente, a palavra Sintra provém de Sin, nome que os Babilónios davam à Lua e do qual os hebreus extraíram SINAI (do caldeu SIN-AI = Monte da Lua). O sufixo TRA (SIN + TRA), que significa três, foi acrescentado pelos antigos Lusos, para, dessa forma, designarem “o conjunto de três coisas, qualidades ou atributos da deusa Sintra, no seu aspecto de Lua no Céu, Diana na Terra e Hécate no Inferno.”[2]

in Eduardo Amarante, "Universo Mágico e Simbólico de Portugal", Apeiron Edições



[1] Leite de Vasconcelos, Religiões da Lusitânia, vol. 2.
[2] M. Labrator, A Mística Lenda de Sintra.

OS LUSITANOS E A CRENÇA NA IMORTALIDADE DA ALMA


“A religião dos Lusitanos era panteísta, sendo mais que provável a existência de um “colégio” sacerdotal à semelhança do druidismo celta.”

“Os Lusitanos tinham a firme crença na imortalidade da alma. Encaravam a morte com uma grande tranquilidade, o que contrasta bem com o temor supersticioso que este evento natural representa nos nossos dias, e isso devia-se à firme convicção que tinham na realidade da reencarnação. Davam uma grande importância aos cultos funerários, os quais tinham por objectivo assegurar, nas melhores condições possíveis, a passagem da alma do plano terrestre à sua nova morada etérea, onde iria permanecer até ao momento de regressar ao convívio com os mortais. É claro que a constatação desta “outra realidade” dava às suas existências um sentido mais heróico e ritualista, bem distante, por certo, das angústias existenciais do nosso tempo.” 

in Eduardo Amarante, "Universo Mágico e Simbólico de Portugal"

DAS ORIGENS DO PENSAMENTO MÍTICO AO NOVO ESPÍRITO ANTROPOLÓGICO



Até há bem pouco tempo entendia-se por “pensamento mítico” o modo de pensar – que se reflectia em práticas mágico-religiosas – das sociedades arcaicas situadas nos últimos degraus da civilização. Pensava-se, então, que o mito não passava de uma fábula sem qualquer conteúdo real. O mito seria o modo pelo qual mentes infantis e supersticiosas procuravam explicar os fenómenos naturais que presenciavam a cada passo (como seja o relâmpago, o trovão, etc.) sem poderem descortinar as suas causas e, por isso, temiam-nos. Por outras palavras, o mito não seria mais do que o modo de expressão do homem primitivo que via em tudo aquilo que não compreendia fenómenos produzidos por forças sobrenaturais que ele, temeroso, venerava e cultuava, fazendo libações e sacrifícios a fim de que esses poderes deificados lhe manifestassem o seu agrado através de dádivas (chuva, fertilidade, etc.) ou, pelo menos, o não castigassem por meio de todo o tipo de calamidades.

As chamadas “mitologias” exprimiriam esta maneira de pensar do homem de mentalidade primitiva, se bem que de uma forma mais elaborada. Assim, por exemplo, as mitologias grega, ou suméria, etc., não passariam de uma espécie de “contos de fadas”, de inocentes mentiras em que acreditaram piedosamente milhões de pessoas durante milhares de anos. O interesse da sua divulgação actual reduzir-se-ia à esfera meramente cultural, com comentários bem explícitos sobre o grau de superstição dessas gentes, para que não restasse a menor sombra de dúvida no espírito daquele que se iniciasse no estudo das antigas culturas. Curioso conceito de “cultura” é este que se fundamenta em pressupostos e em dogmas. Para que serve saber, perguntamos, se a cultura que nos é fornecida, em vez de estimular a reflexão é um meio de imposição de crenças tão efémeras como o nosso próprio século. A vaidade humana, que impede reconhecer que errámos, tem sido o maior obstáculo ao verdadeiro progresso da Humanidade.

Começa a ser evidente o absurdo que é pensar que homens como Sócrates, Platão, Pachacutec, etc., estivessem imbuídos de mentalidade primitiva. Por outro lado, e paralelamente a isto, os avanços da Hermenêutica e da própria Antropologia forçaram a uma revisão do conceito de mito, e os aturados estudos efectuados nas últimas décadas em torno do pensamento mítico no seio das sociedades primitivas por especialistas como Mircea Eliade, Malinowski ou Gilbert Durand, a par da valorização do pensamento simbólico-analógico produziram, necessariamente, os seus efeitos positivos.
Creio que se está a processar uma autêntica revolução de mentalidades, cujos resultados se verão num futuro não muito distante.

Era necessário e inevitável que isto viesse a suceder. A nossa época perdeu as suas raízes. Sentimo-nos desenraizados e esse sentimento engendra angústia e loucura. Vive-se perigosamente num ambiente de instabilidade em que tudo foi posto em causa: os sonhos, as ideias, as crenças e os costumes. Não se pode viver assim durante muito tempo. Por isso se fala tanto em evasão, em liberdade, em crise. Pressentimos que algo vai mudar e, embora a maioria – como desde sempre todas as maiorias –, prefira não pensar e vá vivendo com o que tem e como pode “à espera de melhores dias”, há os que acreditam num “Fim do Mundo” próximo e outros, mais optimistas, numa próxima “Idade de Ouro”. Surge de novo o interesse por velhas superstições e as outrora “ciências malditas”, como a Astrologia, têm cada vez mais adeptos e já são estudadas em algumas universidades. Aparece, renascido das cinzas, o mito a impregnar o ambiente social. Na verdade, como demonstra M. Eliade, o mito nunca deixou de existir, de impregnar o homem, nem mesmo nos tempos modernos; simplesmente caiu na esfera do profano no seio de uma sociedade dessacralizada. Agora renasce, purificado pelo fogo, como um apelo atávico do Homem em busca das suas raízes.

Uma época de crise é uma época de mudança, como indica a própria etimologia da palavra. Cremos que muita coisa irá mudar, mas tudo será para nosso bem, visto existir um arquétipo evolutivo, ou seja, um plano cósmico que se vislumbra melhor precisamente nas charneiras da História.
Nas raízes da História está a chave que abre as portas do futuro. Por isso vamos dar ouvidos ao apelo que nos vem do mais fundo dos tempos e mergulhar, livres de tabus e preconceitos, no ambiente acolhedor do mito.

1.      O sagrado e o mito
O mito contém na sua raiz etimológica a própria ideia de “mistério”. Com efeito, a presença do mito é uma constante nas sociedades de corte iniciático. Para Luc Benoist[1] “o desenvolvimento de uma verdade doutrinal em mito não é uma fábula, visto que o vocábulo fábula provém de uma outra raiz que significa palavra (fabula), enquanto o vocábulo mito provém de uma outra raiz que significa mudo e silencioso (mutus). Ora esta ideia de silêncio prende-se às coisas que, pela sua própria natureza, são inexprimíveis a não ser por símbolos. Mito e mistério emanam pois da mesma ideologia esotérica, cujo carácter provém da sua primordialidade e da sua necessidade”. O mito é, por conseguinte, o relato de uma história verdadeira, sagrada, que se situa for a dos limites espacio-temporais. Daí o seu carácter subjectivo que actua nos domínios do inconsciente e que, portanto, é reversível. Na opinião de C. G. Jung o “inconsciente colectivo” precede a psique individual. Quer isto dizer que o mito é o móbil determinante do comportamento do homem. Viver um mito significa ter acesso à esfera do inconsciente que é um verdadeiro percurso iniciático. “Viver os mitos – escreve M. Eliade – implica uma experiência verdadeiramente ‘religiosa’, visto que se distingue da experiência vulgar da vida quotodiana”[2]. E, para o homem religioso o essencial precede sempre a existência.

O mito designa uma “história verdadeira”, porque sagrada, quer dizer um acontecimento primordial que teve lugar no começo do tempo. “O homem é aquilo que é hoje porque uma série de acontecimentos ocorreram ab origine. Os mitos contam-lhe esses acontecimentos e, ao fazê-lo, explicam-lhe como e por que razão ele foi constituído desse modo. Para o homem religioso, a existência real, autêntica, começa no momento em que recebe a comunicação dessa história primordial e assume as suas consequências. Há sempre história divina, pois as personagens são os Seres Sobrenaturais e os Antepassados míticos.”[3]

Para B. Malinowski “o mito é um elemento essencial da civilização humana; longe de ser uma vã fabulação, é, pelo contrário, uma realidade viva, à qual constantemente se recorre, não é uma teoria abstracta nem uma ostentação de imagens, mas uma verdadeira codoficação da religião primitiva e da sabedoria prática.”[4]

Vemos, assim, que está definitivamente ultrapassada a ideia de que os mitos não passavam de meras fabulações, poéticas por vezes, mas desprovidas de conteúdo real. Ora, é precisamente o contrário que sucede. Interpretar à letra um mito, objectivamente, equivale a destruír a possibilidade de o entender. É verdade que hoje predomina o “racional”, porém, convém recordar que o acesso ao mito, em si eminentemente subjectivo, nunca se fará com esse instrumento. Por detrás do seu aspecto “fantasioso” o mito contém uma verdade oculta, uma história verdadeira, porque se refere sempre a realidades. Dizia o Imperador Juliano que “aquilo que nos mitos se apresenta imverosímil é precisamente o que nos abre o caminho para a verdade. Na realidade, quanto mais paradoxal e extraordinário for o enigma, tanto mais parece avisar-nos que não devemos confiar na simples palavra, mas esforçarmo-nos em torno da verdade oculta.”[5]

A importância dos mitos na história da humanidade, e não apenas nas sociedades arcaicas é de tal ordem que, enquanto houver história haverá mitos, independentemente de se ter ou não consciência deles. Daí que não seja exagero afirmar ser impossível compreender a História, qualquer que ela seja, sem os motores ocultos que a impulsionam, isto é, os mitos.
Mircea Eliade salienta que “os mitos são a forma mais geral e eficaz de perpetuar a consciência de um outro mundo, de um além, seja ela o mundo divino ou o mundo dos Antepassados”[6]. E Van der Leeuw não hesita em afirmar que é suficiente “conhecer o mito para compreender a vida.”[7]

11. O mito e o símbolo
Se o mito é uma Ideia Primordial, a função do símbolo é de a tornar inteligível, de lha servir de “linguagem”. Dizia Santo Isidoro que o símbolo é um signo que dá acesso a um conhecimento, ou seja, é signo do invisível, do espiritual. E, neste contexto, Mircea Eliade escreve que “o símbolo revela uma realidade sagrada ou cosmológica que nenhuma outra ‘manifestação’ poderia revelar.”[8]

Na sua etimologia – em grego sumbolon – a palavra símbolo anuncia a ideia de continente e pode ser figurada por uma barca, receptáculo do sagrado. O símbolo, na sua função mediadora, é o veículo de algo que, pelo seu carácter atemporal deve ser preservado e intuído. Para M. M. Davy “a função do símbolo é de despertar o homem e de conduzi-lo ao seu princípio original, quer dizer, ao plano do sagrado no qual tudo é ordem, medida, proporção. Assim, o símbolo permite ao homem atingir um nível inacessível à razão. Ele oferece um ensinamento duplo, o de recordar o sentido de uma realidade e de indicar uma via para chegar até ela”[9]. Acrescentamos que para Platão conhecer significa recordar, isto é, conhecer e compreender o verdadeiro, o belo e o bom é, sobretudo, recordar-se, ter reminiscências vivas de uma existência puramente espiritual, no outro mundo.[10]

O acesso à compreensão de um símbolo varia consoante o nível de consciência daquele que o contempla. O símbolo em si é invariável, mas a leitura que dele se pode extraír é tão diversa quão diversos são os observadores. É por isso que os símbolos universais são uma constante em todas as épocas e lugares geográficos, porque transmitem realidades eternas alheias aos condicionalismos temporais. “Um mesmo símbolo, por exemplo a cruz, será diversamente interpretado por um homem segundo as diferentes idades do seu nascimento e do seu crescimento espiritual. O símbolo não muda, mas a mensagem que ele oferece depende do estado de consciência daquele que o capta”[11]. Assim o símbolo, “na sua realidade profunda, atesta a presença do divino, exprime o sagrado e, por esse facto, compara-se a uma revelação.”[12]

12. O mito e o rito
A palavra rito, segundo a sua etimologia sânscrita (rita) significa o que é conforme à ordem. Segundo Luc Benoist podemos definir um rito “como um conjunto de gestos, respondendo a necessidades essenciais”, devendo eles “ser executados seguindo uma certa euritmia. São gestos elementares que realizamos todos os dias e que acompanham a nossa maneira de viver, de caminhar, de nos vestir, de manifestar a nossa simpatia ou a nossa hostilidade”[13]. Para Eliade “um rito é a repetição de um fragmento do tempo original” por meio do qual o homem das sociedades primitivas se insere no “tempo mítico”, tempo esse que, acrescenta o mesmo autor, “é ‘criador’, no sentido de que é então, in illo tempore, que tiveram lugar a criação e a organização do cosmos, da mesma forma que a revelação, pelos deuses, ou pelos antepassados, ou pelos heróis civilizadores, de todas as actividades arquetípicas”[14]. “O tempo original – adianta Eliade – serve de modelo para todos os tempos; o que sucedeu um dia repete-se sem interrupção.” É por isso que “tudo quanto aos olhos do homem moderno é verdadeiramente ‘histórico’, quer dizer, único e irreversível, é considerado pelo primitivo como destituído de importância, porque não tem precedente mítico-histórico.”[15]

Aproximando estas duas opiniões, parece-nos ser correcto afirmar que um rito é um conjunto de gestos efectuados segundo uma ordem, exprimindo uma atitude de interiorização pela repetição de um modelo exemplar. Mito e rito são, pois, “as expressões complementares de um mesmo destino, sendo o ritual o seu aspecto litúrgico e o mito a sua realização através dos episódios de uma história vivida.”[16]

In Eduardo Amarante "Universo Mágico e Simbólico de Portugal", Apeiron Edições

[1] Luc Benoist, Signes, symbols et mythes, Paris, 1975.
[2] Mircea Eliade, Aspectos do Mito.
[3] Ibidem.
[4] B. Malinowski, Myth in Primitive Psychology, Londres, 1926.
[5] Juliano Imp., Contr. Héracl. 217c.
[6] Mircea Eliade, o.c.
[7] Van der Leeuw, L’Homme Primitif et la Religion, Paris, 1940.
[8] Mircea Eliade, Tratado de História das Religiões, Lisboa, 1977.
[9] M.M Davy, Initiation a la Symboloque Romane, Paris, 1977.
[10] Perante aqueles que negavam a ressurreição dos mortos, Teófilo de Antioquia apelava para os indícios (tekhméria) que Deus colocara ao alcance deles nos grandes ritmos cósmicos: as estações, os dias e as noites. Escrevia: “Não há ressurreição para as sementes e para os frutos?”
[11] M.M. Davy, o.c.
[12] Ibidem.
[13] Luc Benoist, o.c.
[14] Mircea Eliade, Tratado de História das Religiões.
[15] Ibidem.
[16] Luc Benoist, o.c.