No dia 25 de
Julho[1]
de 1139 travou-se a célebre batalha de Ourique, em que D. Afonso Henriques desbaratou
os mouros, cujo chefe, denominado Ismar ou Omar, conseguiu fugir, salvando a
custo a vida. Segundo os cronistas antigos, a batalha de Ourique foi a pedra
angular da fundação de Portugal como reino independente. Ali os soldados
aclamaram rei o jovem príncipe que os conduzira à vitória sobre cinco reis
mouros e os exércitos sarracenos de África e de Espanha.
Foi a mais
célebre de todas as histórias de lutas contra os mouros[2].
Este facto deveu-se a uma das muitas incursões que os cristãos faziam em terras
de mouros para conseguirem gado e demais despojos.
Os momentos
que antecederam a batalha são assim relatados por André de Resende:
“Afonso ocupou a
colina onde estava uma antiga ermida em que determinado velho, de provecta
idade, vivia entre os mouros como um ermitão e que, devido à pobreza e
santidade de vida, por ninguém era provocado injustamente. O quase infindável
contingente militar de Ismar enchia todos os campos em redor e já
esperançadamente se via a tragar os adversários cercados. Não parecia aos
nossos soldados ser decisão avisada combater contra tão grande multidão, pois
cada um deles teria de defrontar no combate para cima de cem inimigos, mas o
príncipe robusteceu o espírito dos seus soldados por meio de um discurso cheio
de esperança e firmeza. Ao mandá-los dispersar ordenou que tratassem de seus
corpos e que aguardassem alegremente o dia seguinte que era santificado ao
apóstolo Tiago, padroeiro das Hispânias.
Como tivesse
anoitecido, veio aquele anacoreta à presença de Afonso e exortou-o a ter
coragem com a revelação de uma profecia. Disse-lhe que à hora da noite em que
ouvisse o som de uma sineta que estava na capelinha deveria sair da tenda pois
lhe iria aparecer no ar Cristo suspenso da cruz.
Afonso, contente
com uma notícia tão desejada e tão inesperada, velou toda a noite aguardando o
prometido. E assim, ao romper da alva e antes do dia, ao sair da sua tenda real
quando tinia a sineta, pôde olhar para o Senhor crucificado, suspenso no ar.
Arrastado, quase fora de si, pelo prazer desta visão, adorando-o dizia assim:
‘Será verdade, ó Salvador do mundo, que me apareces a mim neste momento? Mas
por que razão apareces àquele que em ti crê e que te honra com a maior devoção?
Antes te dignasses a aparecer a estes infiéis, ignorantes da tua divindade,
inimigos teus e portanto meus, para que compreendam o mistério da tua cruz e
deixem de ser insensatos’. Quando com estas e outras palavras semelhantes
prosseguia, como que em êxtase, foi muito agradavelmente surpreendido pela voz
de Cristo que lhe falava e prometia vitória. Logo que a divina aparição se
recolheu ao céu, pediu as armas, ordenou que se armassem os soldados, que se
formassem as linhas de batalha e que as tubas em uníssono dessem o sinal.
Alguns dos chefes
procuraram-no em nome do exército, dizendo:
- ‘Os teus homens,
valente chefe, pedem que lhes permitas saudar-te como rei’.
Mas ele
respondeu-lhes:
- ‘Fidelíssimos
companheiros de armas! Coube-me a mim, entre vós, o nome e título
suficientemente honroso de príncipe. Não ambiciono outro. E ainda que o
desejasse muitíssimo ou quisesse aceder ao que pedis, nem o momento nem o local
o permitem. Esforçar-me-ei por que não vos desagrade como vosso chefe;
esforçai-vos vós para que eu como chefe não tenha a lamentar a perda de
soldados’.
A resposta foi a
seguinte:
- 'Não só
prometemos o que pedes como, quanto a nós, não faltaremos ao dever. Mas pelo
rei combateríamos com mais ardor, venceríamos com mais honra e morreríamos mais
alegremente’.
Então, depois de
quase terem forçado a quem se escusava, foi aclamado por três vezes em altos
brados e ao som das tubas, clarins e tambores:
- ‘Vida e vitória
para Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal’!
Depois de darem aos
soldados o santo-e-senha, passam-se para o campo dos inimigos. Da parte
contrária, porém, aquele inumerável exército de bárbaros estrondeava com tão dissonantes
clamores e com tão terrível estrépito, que parecia que o céu vinha abaixo e que
a terra era abalada por um sismo.
Principiou o
combate, sangrento, implacável, da primeira hora do dia até ao meio-dia, até
que o próprio Ismar, cuja vida já corria risco, vida que os nossos
mais-que-tudo cobiçavam, encontrando-se em situação desesperada e tendo perdido
na peleja o primo de nome Omar Atagor, neto do rei Ali, a quem constituíra seu
guarda de corpo, fugiu com os reis que com ele estavam. Verteu-se, porém, tanto
sangue que do local da batalha correram regos na direcção do Cobre e do Terges
(rios próximo de Castro Verde). E, mais ainda, chovendo poucos dias depois,
como a água tivesse lavado o chão sujo de sangue escuro e engrossado os regos,
o Terges que desagua no confluente Cobres levou as águas poluídas até mesmo ao
Guadiana. Afonso, o novo rei, portanto, ficou nos arraiais durante três dias
conforme era hábito dos vencedores, tendo deixado o despojo para os soldados.
Ele próprio, que
até então usava um escudo branco, imaginou insígnias que representassem o
combate que ali se passou. Em primeiro lugar, porque no ar olhara para Cristo
pregado na cruz, desenhou no escudo de prata uma cruz da cor do céu; depois,
porque tinha vencido cinco reis, separou com a própria cruz cinco escudos; em
cada um destes representou trinta moedas de prata, porque se considerara que
por essa soma fora vendido o Salvador do mundo.
O desenho das
moedas foi modificado por uma questão de comodidade pelos reis que se seguiram
e em cada um destes escudos foram colocadas cinco moedas em forma de cruz,
aproximadamente com a forma da letra X, de maneira que, contando duas vezes, o
que está no meio e como a conta é feita desde cima e de lado a lado, se perfaz
o número trinta.
Foram estas as
insígnias que naquele momento e naquele lugar se adoptaram. Quanto aos sete
castelos que no campo rubro do escudo régio rodeiam as orlas, relacionam-se com
outra história.”[3]
O próprio D.
Afonso Henriques narra este mesmo acontecimento anos mais tarde, nomeadamente a
29 de Outubro de 1152, em Coimbra, perante muitos fidalgos, entre os quais Mem
Peres, que redigiu, a pedido do mestre Alberto, conselheiro de el-rei, a
seguinte carta:
“Eu Afonso, rei de
Portugal, filho do Conde D. Henrique, neto do grande rei D. Afonso, diante de
vós, Bispo de Braga, Bispo de Coimbra e Teodósio e de todos os mais vassalos do
meu reino, juro em esta cruz de metal e neste livro dos santos evangelhos, em
que ponho minhas mãos que eu sou miserável pecador, vi com estes olhos indignos
Nosso Senhor Jesus Cristo… e disse entre mim mesmo:
Mui bem sabes,
Senhor Jesus Cristo, que por amor vosso tomei sobre mim esta guerra, contra os
vossos adversários, em vossa mão está dar a mim e aos meus fortaleza, para
vencer os blasfemadores do vosso nome... A que fim me apareceis Senhor? Quereis
por ventura acrescentar fé a quem tanta a tem? Melhor é por certo que vos vejam
os inimigos que não crêem em vós, que eu, desde a fonte de baptismo, vos
conheci por Deus…
O Senhor com um tom
de voz suave que minhas orelhas indignas ouviram, me disse:
‘Não te apareci
deste modo para te acrescentar a tua fé mas para fortalecer o teu coração,
neste conflito, e fundar os princípios do teu reino, sobre pedra firme. Confia,
Afonso, porque não só vencerás esta batalha, mas também todas as outras em que
pelejares, contra os inimigos da minha cruz... Acharás na gente alegre e
esforçada, e te pedirão que entres na batalha com o título de Rei... Eu sou o
fundador e distribuidor de reinos e impérios e quero em ti e teus descendentes
fundar, para mim, um império para cujo meio seja meu nome publicado entre as
nações mais estranhas’...
E que isto se
passasse na verdade juro eu, D. Afonso, pelos santos evangelhos, tocados com
estas mãos...”
Por sua vez,
Frei Bernardo de Brito escreveu na Crónica de Cister o célebre texto que
Frei António Brandão reproduziu depois na Monarchia Lusitana. Este
texto, que reaviva o patriotismo lusitano, demonstra como os cistercienses, já
sob o domínio castelhano, continuaram a lutar pela independência de Portugal.
O milagre de
Ourique foi fruto do aparecimento de Jesus Cristo a D. Afonso Henriques como
garantia da vitória em batalha tão desigual. Aparece relatado, pela primeira
vez, na Crónica de 1419 de Fernão Lopes, que o achara escrito num texto mais
antigo. De acordo com este mito, fora revelado a D. Afonso Henriques que
Portugal era um reino de origem divina, fundado por Deus e que a sua
independência assentava num direito superior ao direito humano. Daqui emerge a
concepção de Portugal como País predestinado ao desempenho de uma missão
providencial, a consumação do mito no futuro mediante o império universal, ou
Quinto Império, profundamente espiritual.
Não obstante a narrativa de Frei Bernardo de Brito
ter sido, de acordo com a maioria dos historiadores, elaborada com fins
patrióticos durante a ocupação castelhana, “o
seu teor literário não contradiz por si próprio a veracidade possível ou
impossível da tradição” (A. Quadros).
In Eduardo Amarante, “Templários”, vol. 2
[1] Lembremos que esta data está imbuída de um profundo
simbolismo, uma vez que 25 de Julho é o dia de Santiago, patrono dos exércitos
cristãos na luta contra os mouros.
[2] Refira-se, a título de curiosidade, que Gualdim Pais,
fundador da cidade de Tomar, participou nesta batalha ao lado de D. Afonso
Henriques. Tinha na altura 21 anos de idade. Para mais informações v. mais
adiante neste Capítulo § 5. A posição
estratégica de Tomar e a Ordem do Templo. Gualdim Pais.
[3] Estes sete castelos têm a ver com o próprio significado
simbólico do número 7 e também com a cintura de sete castelos templários em
redor de Tomar, bastião-templo dos templários em Portugal, cujo papel na
fundação de Portugal ao lado de D. Afonso Henriques foi determinante, como
veremos mais para a frente.